oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Wednesday, June 19, 2013

Dos cativeiros

Ok, talvez a ideia de criar uma osga em cativeiro não tenha sido das mais brilhantes.
Nem sempre temos grandes ideias. Às vezes temos ideias mais modestas. Outras vezes temos ideias muito pouco iluminadas, daquelas muito fraquinhas que atribuímos ao cansaço, ao excesso de trabalho (o excesso de trabalho é o new black. Se não trabalhamos demais, não somos fixes.), ao tempo, que anda tão esquisito, ao facto de não dar nada de jeito na televisão.
Outras vezes ainda, temos ideias que, só pelo facto de nos terem impedido de as pormos em prática, quase nos devolvem a fé na humanidade, em jesus cristo, no buda, no elvis, no chocolate light, nos livros de filosofia para totós, na democracia, na resolução de problemas do centro de redes e partilha do windows, nas manifestações pacíficas da população, nas greves gerais, nos pensos de nicotina, na dieta atkins, na secretaria de doutoramentos, na declinação única latina (uma espécie de moeda única que não resultou e que acabou por se transformar em 5, que na verdade são 10, que em bom dizer vai parar a mais de 20), na programação da RTP2...

Mas esta ideia não era dessas. Era só uma ideia. E o problema aqui foi, parece-me que todos concordarão, o azedume da oliveira, a descrença e a desilusão a pingar-lhe dos veios dos ramos, o cinismo com que se recusa sequer considerar uma ideia.

A oliveira entrou na adolescência.
A oliveira é, de há uns meses para cá, uma pequena amostra de monstro, magrinho que dói ver, meio castanho meio verde, com uma língua tão afiada que por mais que uma vez acordei à porta do quintal com a tesoura de poda em riste.
A oliveira continua a ser minha, mas já não o diga em voz alta, porque já ouvi outros donos de árvores comentarem a forma como ela me responde...
A oliveira acorda ao meio-dia e já não gosta de neo-realistas. Agora lê americanos, gosta da Beat Generation e do Kierkegaard.
Não tem medo de nada nem de ninguém, mas tudo a assusta. Vê o Eixo do Mal e ri-se muito e está convencida de que o Al Gore teria sido o melhor presidente americano de todos os tempos.
A oliveira (que ainda é minha mas o mundo escusa de o saber) não sabe o que é um emprego, mas diz que assim que puder, vai arranjar um e sair deste quintal, mudar-se para um jardim onde as oliveiras controlam o comando da televisão e o tempo, onde não existe a opressão de uma biblioteca pobre de contemporaneidade, cheia de poetas mortos e de livros amarelados e feios.

A oliveira já não quer saber de mortos, porque outro dia ouviu alguém dizer que íamos todos morrer e que o sol ia morrer e que depois não havia mais nada e ela decidiu que isso, a ser verdade, só pode querer dizer que só os vivos contam. E os recentemente trespassados, que ela não tem culpa de estar viva quando eles morrem e uma oliveira tem de se alimentar.

Um dia a oliveira há-de cansar-se de ler as mesmas palavras, de não precisar de um dicionário há anos, de se fartar de si mesma nos outros. Se ainda cá estiver (quem sabe quanto tempo dura a adolescência de uma oliveira? Pior!, quem sabe se é só uma ou se vai e vem, como as calças à boca de sino?), nessa altura volto a falar-lhe da ideia da osga em cativeiro.



De Institutionibus

- Sabes do que me lembrei?
- Diz lá.
- E se eu criasse uma osga em cativeiro.
- ...
- «...» o quê?
- Nada. Só achei que ias dizer alguma coisa interessante.
- Acho que a água do teu prato deve estar estagnada. Não bebas mais que estás a ficar azeda.
- Tu é que estás azeda. E se a água está estagnada é culpa tua, que não me ligas nenhuma.
- Decididamente, tenho de te mudar a água do prato. Mas ouve. Uma osga em cativeiro. Alimentava-a, falava com ela, ensinava-lhe a não vir para o meu lado do quintal, ensinava-a a não ter sempre aquele aspecto peçonhento e ar de quem anda a tramar alguma que elas têm, dava-lhe um nome, até podia fazer-se um baptizado aqui no quintal, podias ser madrinha e
- Calmex! Não sou madrinha de ninguém.
- Então?
- Então nada! Não sabes a responsabilidade que é ser madrinha de alguém? Tenho lá vocação para ser guia espiritual.
- Oh. É só uma osga.
- Se não vais levar isto a sério, não sei porque hás-de fazê-lo. Estás a fazer pouco das instituições.
- Mas não tens de fazer nada, oliveira. Tem calma. Só tens de lhe segurar a cabeça enquanto lhe mando uma mangueirada da outra ponta do quintal...
- Ai sim? É só isso? E quando ela vier perguntar-me qual é o sentido da vida? Ou por que razão tem de comer a sopa toda? Ou por que raio não lhe ligam nenhuma os outros osgos? Ou de onde vem e para onde vai? Achas que é de lhe mandar com uma mangueirada nessas alturas? Ou seguro-lhe só na cabeça enquanto tu o fazes.
- Não sei por que não. Não sei até se não é melhor que estar a contar a verdade.
- Qual verdade?


Saturday, May 25, 2013

Saturday, February 16, 2013

Os (...) da vida


(...)
- Se estás a procrastinar desta maneira é porque tens alguma coisa importante para fazer.
- Queres ouvir a história ou não?
- Querer, quero, mas já sei que se estás aqui fora a uma hora destas, não deve ser fácil nem rápido o que tens para fazer.
(...)

Do caderno Há gente que sabe coisas de que o mundo não desconfia, volume IV


- Achas que há pessoas que sabem mais do que aquilo que estão a dizer?
- Acho que sim. 


Foto: Sofia Loren em Portugal 
Agnés Varda, Póvoa do Varzim
1956

Na parede


Há dias em que andamos tão assustados que não podemos deixar de nos perguntar o que têm os outros de tão assustador para estarmos assim. E quando olhamos para trás, sobre o ombro, de esguelha e a medo, em vez de encontrarmos os outros, sentimos uma sombra. Parece ser nossa, mas não tínhamos dado por ela ontem. E quando nos dizemos que os contornos que vemos não lembram os nossos - não deve ser a nossa, decerto - somos confrontados com um problema de memória.

A oliveira às vezes assusta-se com a sombra dos próprios ramos. Ela conhece-os bem, mas à noite não os reconhece. A sombra não tem ramos castanhos e folhas verdes. A sombra é negra e não distingue nela princípio e fim, sonho e pesadelo. As fronteiras de si extinguem-se e tudo o que é ela se confunde numa estranheza que é outra, embora seja ela. Reconhece os contornos, se se concentrar, mas o que encerram?
E ela convence-se de que não é ela. Diz-me que é outra oliveira que ali está, que só aparece à noite. Outra oliveira a quem só aconteceram coisas más, cuja tristeza a contagia. Uma outra oliveira que lhe tira até a sede.

Contei-lhe então das noites que trazem consigo não o mal do mundo, mas o mal da gente. Ela interrompe-me e diz nunca ter feito mal. Tirando aquela vez em que gozou com a Inês Pereira por ela nunca mais crescer e ficar toda encolhida mal caíam umas pinguinhas de chuva. E aquela outra vez em que assustou a Violeta gritando «Ela vem lá!» e a desgraçada caiu do muro para dentro do prato da água da Aurora e quase morreu afogada. E ainda aquela vez, quando gritou dia e noite durante mês e meio por não querer mudar a terra do vaso, alegando ir perder todos os amigos que tinha, embora estivesse a definhar por já não ter vitaminas nenhumas... E depois há as vezes em que eu - eurídice dona da oliveira - não lhe falei durante 2 meses sem ela saber porquê, a outra vez em que a Aurora lhe gozou com os ramos do meio, por serem «raquíticos», da vez em que teve sede e achou que ia morrer, da vez em que me viu de tesoura de podar em punho e se mandou para o chão, espalhando terra pelo quintal inteiro.

«Esse mal todo», respondi, então. «Esse mal todo é a tua sombra de noite. A tua sombra és tu.»
- Não percebo... Como me livro de mim?
- Lamento, mas isso não existe. Não te livras de ti. Vives contigo.
- De dia e de noite?
- De dia e de noite.
- Também é assim contigo?
- Não, eu sou especial.
- A sério?
- Não.
- Oh.
- Pois.

- Olha, é quase de manhã.
- Tens razão. É melhor ires-te embora que a Violeta vem cá hoje ver aquele prato de água que vagou o Verão passado. É para a irmã que enviuvou há dois anos. Muda-se daqui a um mês.
- Fui.


Friday, November 16, 2012

da condescendência

Não foi simples explicar à oliveira os processos mentais conducentes à condescendência.
Felizmente, tudo se tornou claro depois de lhe explicar o que era a arrogância.

- E como se evita?
- Não evitas.
- Então o que faço?
- Ignora até não conseguires mais.
- E depois?
- Aguentas mais um bocadinho.
- E se já não aguentar mais?
- És uma oliveira. Nasceste oliveira. Às vezes, a condescendência é tudo o que o mundo tem para te oferecer.
- Por ser uma oliveira?
- E por saberes que os outros não o são.
- Não percebo.
- Mas hás-de perceber. Ao contrário deles.
- Estás a ser condescendente?
- Não, estou a ser honesta.
- Às vezes não se percebe bem...
- Pois não.

Thursday, November 01, 2012

Bocas Da Reacção

Tem dias em que a oliveira também vem para aqui escrever.
Porque ele há coisas que estragam o dia de uma oliveira. E de uma pessoa.

Friday, December 23, 2011

Já passou

da série músicas que a minha oliveira queria que durassem um bocadinho mais para arrumar melhor as memórias do quão perfeita a vida futura foi, em retrospectiva.


Sunday, November 20, 2011

tarde de 20 de novembro de 2011 (por eurídice)

Varri o quintal. Dois quilos de folhas secas e molhadas, amontoadas numa disposição inaudita e suspeita atrás dos vasos - direitinhas para o lixo. Depois, mangueirada. Forte. Tudo limpinho. Sem osso. Missão cumprida.

tarde de 20 novembro de 2011 (por Violeta)

Fui passar o dia a casa da prima Antónia, no quintal do 56. Quando voltei, não tinha casa. Ainda vi restos da poltrona de figueira (uma relíquia da minha mãe) entalados debaixo do vaso da Aurora. E mais nada. Desapareceu tudo. Tudo.

Monday, November 07, 2011

eurídice sitiada - 2º dia

- Queres que me mande para cima dela. Posso não a matar, mas se lhe acertar com o tronco, de saúde não fica!
- Deixa, Aurora. Ela há-de cansar-se. Além disso, partias-me a janela toda. E hoje em dia é tão difícil encontrar um vidraceiro que me faça uma janela destas em condições...
- A dona Paciência esteve de intrigas com ela, hoje, sabias?
- Com a Soraia?
- Sim.
- Uma conspiração? Na minha própria casa!? Essa mulher não tem remédio. Vai já recambiada para a prateleira da filosofia. Alemã!
- Não achas que estás a ser demasiado severa com a velhota?

Sunday, November 06, 2011

- Sei que é paranóia minha, mas ia jurar que aquela osga está a fazer-me uma espera. Desperta-me qualquer coisa que já não é só o costumeiro nojo ou o terror inusitado e desproporcional que tenho pelas criaturas da espécie.



- Não é paranóia nenhuma. Ela está mesmo à tua espera. À espera que saias ao quintal.
- Também é escusado gozares comigo dessa maneira. Sabes que me pelo de medo...
- Não estou a brincar, eurídice. Juro com estes dois (ramos) que a terra há-de comer, a rapariga está mesmo à tua espera. Não te lembras da dona Argentina? Claro que não te lembras, nunca te lembras de nada... Adiante. A dona Argentina é (era, paz à sua alma, deus a tenha em paz e sossego) a avó
- "deus a tenha em paz e sossego"?
- Não sejas chata. Cada um com a sua. E tu não tens poucas. Se fosse a ti, aproveitava agora para ficar caladinha. Queres saber ou não?
- Querer, querer, não quero. Mas também não queria ter uma osga colada à janela, e tenho. Claramente, a minha vontade neste quintal conta muito pouco.
- Não sejas fiteira e ouve lá o que tenho para te contar, que não te quero mal. A dona Argentina, dizia eu, é (era, paz à sua alma, deus a tenha em paz e sossego) a avó da Soraia, a osga que tens aí à janela. Não te lembrarás, claro, já vimos isso, mas a dona Argentina, que morreu há 10 anos em cima do telheiro, viveu 5 dos seus 15 anos sem uma perna e com um tique nervoso acentuado que a impedia de caminhar a direito. Nasceu, cresceu e (quase) morreu naquele que é considerado o pior momento da história das osgas deste quintal: a tua infância e pré-adolescência.
- Homessa, mas que fiz eu à desgraçada? Ai, espera... Não me digas que foi aquela que persegui até ao fundo do quintal de vassoura em riste, andava eu pelos meus 12 anos?
- Samente!
- "Samente"?
- Vai ao Youtube. Tem graça, por acaso.
- !?
- Mas sim, foi essa mesma. Conta-me a Soraia que a mãe lhe contou como a sua mãe, avó da Soraia, era doente dos nervos e, quando começaste a jogar basquete no quintal, foi a ruína da comunidade. A rede de basquete pendurada na parede foi o fim. Osgas de quintais vizinhos chegaram a achar que estavam 20 crianças neste quintal com 20 bolas cada uma.
- Não percebo como vem isso ao caso.
- Vem porque a dona Argentina foi parar ao muro proibido sem querer, coitadinha, já pouco lúcida e com o sentido de orientação arruinado pelas vibrações violentas das boladas que atiravas à parede. Uma vez no muro proibido, para além de gritares com os pulmões de um adulto e a intensidade de um infantário com 200 crianças à vista da Argentina (o que desorientou ainda mais a pobre), acertaste-lhe com a vassoura numa das pernas, que teve de ser amputada pela Violeta.
- (engulo em seco)
- A Soraia tem maus fígados, isso está visto. A Violeta tentou explicar-lhe que eras catraia, que não sabias distinguir as coisas, mas a outra, nada. Nunca chegou a conhecer a avó e a mãe, com o desgosto, emigrou para o quintal do 38 logo depois. Nasceu lá, sem família, sem amigos, com uma mãe aterrada e chorosa dia e noite. Agora voltou e quer vingança.
- Vingança? E como pretende uma osga de 7 centímetros vingar-se de uma mulher adulta? Vai engolir-me?
- Ela diz que sabe bem o que fazer.

Friday, October 28, 2011

O desgraçado do moscardo - licenciado em Psicologia por um reputado politécnico - não sabia ao que ia quando decidiu analisar a minha oliveira.

De que tem medo?
De ficar sem água

Então tem medo da morte, será isso?
Não. Tenho medo de ficar sem água.

O que acha que lhe acontece se ficar sem água?
Fico com sede.

Não morre?
Não. Fico com sede. Que obsessão é essa que tem com a morte?

Não é obsessão nenhuma, estava só...
O senhor Moscardo...

Por favor, trate-me por doutor Abílio Pisca. 
(oliveira revira os ramos de cima, aqueles que já passam o telheiro)
O doutor Abílio Pisca tem medo de morrer, é?

Não, oiça, não está a perceber. É um assunto importante.
Importante é ter água. Já alguma vez teve sede? Muita sede?

Sim, claro.
E agradou-lhe, a sensação?

Evidentemente que não.
E já alguma vez morreu?

Que pergunta... É óbvio que não!
Então não percebo o seu problema.



Monday, October 24, 2011

da série perdidos da gaveta, livro III do apocalipse mariapiense, epístola às oliveiras vindouras

A minha casa não é minha. O meu bisavô viveu aqui com os três filhos e a mulher. Os filhos casaram-se, ele morreu. A minha bisavó viveu mais uns anos. E viveu aqui com o filho (o meu avô) a mulher dele (a minha avó) o filho deles (o meu pai). O meu avô morreu. A minha bisavó morreu. O meu pai casou-se - com a minha mãe, naturalmente - e veio para cá. Eu nasci, a minha avó morreu. Os meus pais mudaram-se. Fiquei eu. Esta casa não é minha, porque eu só vivo aqui, consciente da minha enferma insignificância para estas paredes que viram anjos e demónios, amor e ódio, doença e morte e vida. E osgas. Muitas osgas. Nem todas sobreviveram, sobretudo as que foram avistadas pela minha mãe.

Se a cómoda que está no meu quarto, a mesma que esteve no quarto da minha bisavó, da minha avó e da minha mãe, decidisse um dia falar comigo, talvez me contasse o que se passou no dia em que os meus tios-avôs, uma tríade de maduros lisboetas, foi para o torel por insultar um polícia. A história faz do meu bisavô um colosso, que com uma bofetada bem aplicada na cara de um, mandou os outros dois ao chão. Ou de quando o Anjinho caiu do 2º andar, pelo vão das escadas, e aterrou de pé no rés-do-chão, incólume. Imagino o tabefe de nervos preso na palma da mão da dona Emília... 

Esta casa guarda tudo o que sou, o que não fui e o que poderia ter sido; sabe coisas que eu não sei, coisas que eu gostaria de saber e outras tantas que preferia que não soubesse, mas alguém tinha de ser cúmplice. 

Esta casa é de muita gente antes de mim e assim continuará até que de mim seja gerada outra pessoa. Quando isso acontecer, de novo pintarei as paredes, mudarei os móveis de sítio, dormirei noutro quarto, para que nenhum dos segredos seja revelado antes de tempo. Para que os meus bisavós, os meus avós, os meus pais e eu permaneçamos. E para que nenhuma osga fique sem tecto.

Friday, September 16, 2011

ABECEDÁRIO DE UMA OLIVEIRA COM SEDE

A Violeta diz-me que sa
B e que a eurídi
C e, um
D ia, vai voltar ao quintal. Diz que volta s
E mpre, que não
F az por mal quando se tranca em casa, que são amar
G uras passageiras de uma
H ipocondríaca melancól
I ca reincidente, que
J á o anjinho era assim, que não há nada a fazer. Fico sempre ca
L ada, sem saber o que dizer. Não sei do que fala. Eu não tenho a
M arguras. Te
N ho raízes, terra, um prat
O para a água e uma janela
P ara o interior. O que sei é
Q ue não me
R ega há
S emanas e que tenho sede e calor e frio e que
T enho de aprender a ir sozinha do q
U intal à estante da sala, que isto de não ter li
V ros para ler é pior que viver numa cai
X a de cartão sem buraquinhos por onde entrar lu
Z .

Thursday, August 25, 2011

Da série Dramas da vida real e casos da vida, tardes da júlia e senhoras que possuem santinhas que choram, utilizam óculos e auferem pensões de miséria - caderno II
também conhecido como
Procrastina, valente - volume LXXVIII


A minha oliveira anunciou há dias o fim da sua não-tão-longa-quanto-isso amizade com a dona Joanilde, a amiga imaginária, escriturária reformada com dois filhos, um que já acabou a faculdade e é director (?!) e outra que é linda como o Sol, casa para o ano.
Não fosse este o segundo comunicado do género nos últimos meses (antes da dona Joanilde tinha sido o senhor Adérito, dono de uma loja de ferragens que escrevia poemas do Ultramar e tinha a mulher na retraite), nem me perguntaria (tão pouco a ela)  razão de tanta desamizade.
Achei por bem tentar ir ao fundo da questão, não fosse a minha oliveira estar a transformar-se num criatura anti-social, abespinhada, solitária (teria a quem sair, coitadinha) e perguntar-lhe, enfim, qual o problema dos amigos imaginários que tem tido, para não querer continuar a ser amiga deles.

- Não consigo acreditar neles.

Wednesday, August 24, 2011

da série estes estavam na gaveta desde a última vez que procrastinei

Os versos que se seguem são de uma finura ímpar. Nunca o estilo rasteirinho esteve tão bem representado e é uma pena, indeed, a censura das primeiras e últimas quadras. Noblesse oblige. Sim, que parecendo que não, ainda há aqui alguma dignidade. Pequenina, mas há.

(...)

Mas veja o leitor ainda
a tristeza maior e intestinal
de receber um email, ó linda,
e não ter como imprimir o original.
De bradar aos céus,
a desonraria que seria,
ter lido o esteiros e o gaibéus
e viver ao pé da mercearia
Não!, que a gente aqui é mais bolos
e não suporta comunistas.
Essa gente que escreve desconsolos
Não os querem os retalhistas!
Até porque, e temos de lhes dar razão,
A esses temos de dar para trás!
“Não se pode abrir as pernas a qualquer rapagão”
Já bem o pregava frei Tomás...
É um mundo muito complicado,
este da edição,
ter de gerir um ego beliscado
pelo punho viscoso da revisão. 
Mas a nossa história 
começa muito antes disto,
no tempo da científica arte divinatória
Quando o dito era o anti-cristo
Publicava Marx, Engels e Nietsczhe
resgatando as massas ao analfabetismo
Dizia-se mesmo que fumava haxixe,
Até ao dia em que chegou o capitalismo.
(...) 

continua, sim, mas o servidor não aguentaria nunca tamanha magnificência literária. 
Homero, Virgílio, Dante, ajoelhai-vos perante a grandeza, o génio, o sol lui-même. Camões vive!, sob a forma de uma oliveira, no meu quintal. Pelo sim pelo não, deixámos de comer vaca aqui no quintal, não vá Vishnu tecê-las e a Aurora encarnar o Raúl Solnado. 

adolescência

Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplastro anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade. (M. de Assis in Memórias Póstumas de Brás Cubas)


- Mas se nem gente és, oliveira... 
- Dizes tu. Se não sou gente, que sou eu?
- Uma árvore. Uma oliveira.
- E desde quando falam as árvores?


(...)


- Traz-me lá o emplastro* e vai-te deitar que amanhã trabalhas. 




*o comando da televisão

Tuesday, February 01, 2011

DO MEDO DO ATAVISMO MAIS QUE CERTO DAS CLASSES LITERATAS
(sim, é mais um post sobre academismo)


Da série Títulos Que Ficaram Para Trás


1. A METAFÍSICA DO LUPANANR
Que é como quem diz, “em Portugal sempre se confundiu humanidade com vulgaridade”
Ou ainda
Ai meu deus, ajuda-me, que não somos nada, ou se calhar até somos, mas não é importante e vamos todos morrer à mesma. E eu não quero morrer assim.

2. DO LUPANAR A UTOPIA
percursos do Cristo-Menino do Romantismo ao Modernismo

3. DA METAFÍSICA DO LUPANAR AO ASCETISMO DA CRIANÇA RANHOSA
um estudo sobre dialéctica

4. LEVANTAS-ME A SAIA OUTRA VEZ E EU PARTO-TE A CARA À ESTALADA
uma análise da sexualidade de Pessoa aplicada ao Cristo-Menino (da perspectiva histórica e antropológica das raparigas das bilhas)

5. DA NOSSA SENHORA À LONGCHAMP
para uma história das malas

6.  DA SÍFILIS NO CÉU AO BICHO DA ESCRITA NA TERRA
uma antologia de tragédias

Sunday, January 23, 2011

ODE AO TRABALHO ACADÉMICO
(em verso livre, que não sei rimar)

A página em branco
essa
meretriz de cândida alvura que nos impele
a nós,
discípulos da bem-aventurança literária,
a olvidarmos qualquer réstia
de humanidade em nós contida,
na barriga ou nas falangetas,
e nos transforma em reais,
verdadeiras,
prostitutas da densidade académica de citação.

Lupanar da metafísica
és tu,
real sociedade
de literatos literandos.

da série
Hoje está frio e eu não nasci para isto
volume I de "EXCURSOS OLIVEIRENSES SOBRE  A VIDA NO QUINTAL"
por oliveira da eurídice

Friday, January 21, 2011

DA AUSÊNCIA, que se faz tarde

Sim, temos andado arredias, eu e a eurídice.
Tal facto se deve a um importante trabalho em curso, do qual venho aqui dar conhecimento.

Trata-se de uma espécie de análise comparativa (ó, deuses no alto qualquer coiso, a ignomínia do passadismo!) entre Caeiro e Guerra Junqueiro - a rima não será acaso, acredito.

Não queria deixar de anunciar que habemus titulum, enfim, e que é de primeira água. É, inclusive, de esperar não mais precisar de escrever depois deste épico académico, pois nada mais ficará por dizer sobre nada neste mundo.


A METAFÍSICA DO LUPANAR
Que é como quem diz, “em Portugal sempre se confundiu humanidade com vulgaridade”
Ou ainda
Ai meu deus, ajuda-me, que não somos nada, ou se calhar até somos, mas não é importante e vamos todos morrer à mesma. E eu não quero morrer assim.

Um ensaio de Eurídice Gomes



Espero, depois disto:

- dispensa da apresentação de tese

- convite para leccionar a cadeira "Estudos literários - Esse Absurdo Em que Insistis, Ó Bisonhas Criancinhas, Formar-vos Por Não Saberdes Matemática"

- a imortalidade, por ser uma árvore e o Caeiro diz que isto anda tudo ligado e que a Natureza é tudo e fala em árvores e vê muitas, ao que parece, e insinua que as mesmas serão imortais. 




Tuesday, November 30, 2010

PORQUE ÀS VEZES É PRECISO SAIR DA FENOMENOLOGIA 



porque os quatro quadradinhos 
de metafísica que como 
por dia nem sempre me são suficientes


porque também não sou nada, 
quando até queria ser alguma coisa

e porque é a única coisa que faz
minha oliveira sorrir quando 
está a chover e o frio lhe 
queima as folhas.





"Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.


(...)"

Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos 



Wednesday, November 03, 2010

INÊS PEREIRA


A Inês falou, há dias, pela primeira vez.
Disse
- Não!

Para grande mágoa minha, não presenciei o acontecimento. Foi por alturas da penúltima grande chuvada de Domingo à noite. Esticou o tronco pequenino, encarou os céus (ou a varanda da vizinha de cima, dependendo da perspectiva) e gritou a plenos pulmões
- Não!


Estarrecidas, a Aurora e a oliveira (contou-me a Violeta, que viu tudo de debaixo do toldo) desenrolaram os ramos que as protegiam do dilúvio e exclamaram
- A Inês falou!
- Não lhe chames Inês, que a rapariga ainda não foi baptizada. Não vês que é aziago?
- Não sejas tonta, Aurora. Se falou, vai viver, isso é certo! Que emoção, a nossa Inês Pereira a falar para se ouvir.
- Faz como entenderes. Eu não lhe chamo nada até a eurídice chegar e baptizar a criatura. Para mim, continua a ser a nespereira, tout court.
- Inês Pereira, a nespereira! Será que já sabe ler? As nespereiras têm fama de ser muito espertas...
- A Criação do Mundo, parece-te bem? - sugeriu a Aurora. - Vou pedir ao Artaxerxes que o traga quando parar de chover.
- Perfeito. Mas por que será que disse "não"? Estará zangada?
- Se calhar não gosta de chuva.
- Eu também não gosto muito, mas agora não há grande coisa a fazer. Estamos no Outono, ainda há-de chover muito - observou, muito bem observado, a oliveira.

- Não! - gritou, de novo, a nespereira Inês Pereira.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nenhuma palavra para além do convicto advérbio de negação e decidiram que a nova árvore, que tão heroicamente aguentou enxurrada após enxurrada (provenientes quer do regador quer do céu), é do contra. Certo é que hoje, com a janela aberta e a televisão ligada nas notícias sobre o orçamento, voltei a ouvir "não" vindo do quintal, mais tímido e em tom de queixume.

São tempos difíceis para uma nespereira, uma Inês Pereira, vir ao mundo. Se é do contra, não sei (se for, terá a quem sair); mas que é bonita e forte a minha árvore, isso é.

Sunday, September 26, 2010

TAUROMAQUIAS

disse-me o anjinho

Tuesday, September 21, 2010

ELE HÁ DIAS

eu sou a pinguim da pastinha. 










em que uma pessoa lá vai. Acorda e lá vai. Onde vai, nem a própria sabe.
Põe uma fruta e um iogurte na mala, agarra nas resmas de papel que a perseguem para onde quer que vá (até porque é ela quem insiste andar com o estaminé para trás e para a frente), diz até já à oliveira, suplica à Aurora que não tente voltar a sair do vaso (ainda se ela apanhasse a terra que espalha no processo...), sussurra às proto-nespereiras que vai correr tudo bem, que agora está encoberto mas que o céu vai abrir não tarda, deixa as bolachas-maria ao pé do teodoro, e lá vai.

E neste ir - lá -  que demora, uma atroz e inexpugnável sensação de inércia apodera-se da nossa ida. Mas lá vamos, tentando não pensar muito nem no lá nem na ida.

E depois de ir, atravessa-me o fui: "E se a Aurora for até ao fundo do quintal e não conseguir voltar? E a Violeta, que foi ver a prima ao 54. Ando preocupada com ela. O quintal cheio de mosquitos e a criatura nem lhes toca. Será que perdeu o apetite? Estará doente? Será que pus água suficiente no prato da oliveira? Tenho de comprar um vaso para as nespereiras, que elas crescem a olhos vistos e precisam de espaço."

Quando regresso, já é tarde e o quintal dorme. A oliveira dorme pouco, conta-me como foi o dia, diz-me que aquela terra toda espalhada não foi a Autora, que ela hoje até ficou no vaso a desenhar bigodes nas noivas do catálogo de vestidos de noiva que vem anunciado no jornal que deixaste debaixo do vaso das nespereiras. Pergunto-lhe pela Violeta, se sabe d'alguma coisa...
- Anda um bocadinho em baixo. O sargento faria anos amanhã. Não sei quantos, ela não disse.

Tiro-lhe umas folhas secas dos ramos mais altos, ela agradece; pergunto-lhe se quer alguma coisa para ler e responde que não é preciso, que ainda não acabou o Benito Prada. 


- Quando tens férias outra vez? - perguntou, baixinho, para não acordar a Aurora.

Friday, September 03, 2010

A EURÍDICE FOI CORRER

e foi isto que contou


Monday, August 23, 2010

A OLIVEIRA ESTÁ A LER












"Quando o Padeiro Velho de Casdemundo teve a certeza de que Manolo Cabra lhe desfeitara a irmã, em dois segundos decidiu tudo. Nessa mesma noite matou-o de emboscada, arrastou o cadáver para o palheiro e foi acender o forno com umas vides que comprara para as empanadas da festa de San Bartolomé.

O irmão do meio encarregou-se de cortar a cabeça ao morto. O Padeiro Velho amanhou-o e depois chamuscou-o bem chamuscado. Às duas da manhã untou o Cabra de alto a baixo com o tempero, enfiando-lhe um espeto pelas nalgas. Às cinco estava assado.

"Caramba", disse o irmão do meio, que admirava todas as invenções do mais velho, "é à segoviana!"

"Mas não lhe pões o dente", cortou o outro.

Entretanto o mais novo, regressado já do Pereiro, aonde fora avisar o Padre Mestre, manifestou desejos de capar Manolo Cabra. O do meio olhou muito sério para o Padeiro Velho. Este cuspiu enojado e decretou:

"É tudo para os cães. E agora tragam-me lá a roupa do fiel defunto, que já não tem préstimo senão no inferno."

Se perguntassem ao Padeiro Velho o que mais queria naquele momento, teria respondido:

"Assar-lhe até a memória.""


Trabalhos e Paixões de Benito Prada, de Fernando Assis Pacheco
O VERÃO NO QUINTAL DA EURÍDICE

Entro no quintal e dou com o Artxerxes muito afoito no meio dos vasos



Plantou nespereiras. Aliás, não as plantou propriamente... Ajeitou os caroços de nêsperas que eu pusera no vaso, a ver se vingava alguma, mas ele diz que se não fosse ele, as desgraçadas nunca teriam sobrevivido. Falou com elas, ajeitou-lhes a terra, arrastou-as para o sol e para a sombra consoante a intensidade do sol e regou-as (como não consegue abrir a água, abanava a oliveira e a laranjeira de maneira a que os pingos retidos nas olhas destas caíssem para o vaso das nespereiras).

Organizou-se com a Clotilde e a Conceição para que os mosquitos não enguiçassem as pequenas e leu-lhes os últimos três livros das Histórias do Heródoto, para as inspirar a grandes feitos. Ou pelo menos a grandes nêsperas, no futuro.

A oliveira da eurídice deixou-lhe As Aventuras do João Sem Medo junto do prato da água e a Aurora está a fazer uma lista de coisas importantes que não pode esquecer-se de lhes ensinar quando elas crescerem.

- E como se chamam? - perguntei, entusiasmada.
- Ainda não têm nome. Enquanto não tiverem um tronco suficientemente forte para aguentar as enxurradas de água que nos mandas uma vez por semana, convencida de que não nos dói nada e de que uma rega por semana é suficiente, não arriscamos a dar-lhes nomes. Este quintal está para as árvores como a idade média para a mortandade infantil.

Saturday, July 10, 2010


REVOLTA OLIVEIRENSE







Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

por Manuel Bandeira

Wednesday, July 07, 2010

IMIGRAÇÃO - PARTE II

Esperam que haja tempo para quê? Intrigada e em bicos de pés, aproximei-me da janela (fechadinha, que já cá ando há uns anos para saber como é) para ouvir melhor a conversa e tentar perceber o que se passava naquele quintal. Dou um passo atrás (ainda estou dentro de casa e à janela, mas instintos não se contrariam) ao ver ambas as fugitivas trepar parede acima; reparo, então, no bojo de cada uma e apercebo-me de que aquilo não é barriga de mosquitos. E apiedei-me das moças, de esperanças (osgas bebés não deixam de ser bebés), a arrastarem os ventres pelo musgo das paredes, encharcadas e assustadas.

- Clotilde! Conceição! Voltem que ela já se foi embora - pedia a Aurora.
- É impressionante, palavra d'honra - indignou-se a Violeta, que chegava com as malas às costas. Raça das catraias, que lá tirando os livros não sabem fazer mais nada. Mando-vos eu as minhas primas da terra para abrigarem durante uns dias e nem isso conseguem. E agora, como é que é? Hein? Não dizem nada? Estão as três a tremer de medo cada uma para seu lado. Vim eu a correr da outra ponta da rua, até mandei o Idalécio Pombo avisar que não demorava, para aguentarem um bocadinho, e depois chego e é isto?
- Oh Dona Violeta, a culpa não foi nossa. A eurídice não vinha cá fora há tanto tempo, não imaginávamos que hoje lhe desse para isso. E o Artaxerxes também tinha dito que a distraía e nada. Foi só chegar o afinador do Teodoro e esqueceu-se logo de tudo - argumentou a Aurora, com os ramos baixos.
- Bem, agora temos de ver como é que vamos resolver isto. Vou buscar as primas lá acima e já conversamos.

Abri a janela (uma nesga, só) e perguntei à oliveira:

- De onde saíram aquelas duas criaturas, oliveira? Por que não me disseste nada?
-Já sabia que não ias gostar, por isso não valia a pena contar-te. Ias dizer que não, que isto não é a Santa Casa e que só há espaço para uma osga neste quintal. E elas tinham de ficar na rua ou clandestinas noutro quintal qualquer. Não me pareceu correcto e decidimos não te dizer nada.
- De onde é que elas vêm?
- De longe. Olha, são conterrâneas do senhor dos Bichos. Parece que andavam as duas enamoradas do mesmo sardão, vê lá tu. E não sabiam uma da outra! Quando descobriram, já era tarde e ele deu à sola com a viola às costas. Os pais correram com elas de casa e então vieram para aqui, onde sabiam que estava a prima Violeta. Não te zangues com elas. Zanga-te comigo, mas deixa-as ficar, que não têm para onde ir. Além disso, já viste o estado em que estão. É crime pô-las na rua.

Não é que não me tenha ocorrido tal pensamento, e outros piores, por entre arrepios contínuos, mas não podia ser eu a agravar a desgraça destas criaturas. Chegou a Violeta com as duas primas seguindo atrás dela e parou atrás da Aurora, a olhar para mim. Da janela e ainda muito desconfortável com toda a situação, disse:

- Clotilde Conceição, prazer em conhecê-las. Perdoem-me a reacção de há pouco, apanharam-me de surpresa e não consegui evitar. Eu sou a Eurídice e este é o meu quintal. Sejam bem-vindas. Esta é a Aurora e esta a minha oliveira, que já conhecem. Podem ficar onde vos aprouver, desde que não entrem para dentro de casa. Há água e mosquitos com fartura, às vezes aparecem aí besouros. Disponham. Não aceito convites para amadrinhar os pequenotes, mas ensino-os a ler quando chegar a altura. Se precisarem de alguma coisa, falem com a Violeta, que já cá está há muitos anos e sabe as regras da casa.

- A gente não quer dar trabalho, menina - interrompeu a Clotilde.
- Não dão trabalho nenhum. Ficamos assim entendidas e estou certa de que nos daremos todas bem. E agora, se me dão licença, vou lá dentro vasculhar os cantos todos à casa e arredar os móveis todos, não vá eu dar com mais primas desterradas pelos quartos - respondi.

Pardais, caracóis, caraoletas, bichos da seda. De entre toda a bicharada que um quintal pode ter, calha-me uma família de osgas excomungadas e prenhes.

Vou ser tia.