oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Saturday, July 10, 2010


REVOLTA OLIVEIRENSE







Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções sobretudo as sintaxes de exceção
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário do amante
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

por Manuel Bandeira

Wednesday, July 07, 2010

IMIGRAÇÃO - PARTE II

Esperam que haja tempo para quê? Intrigada e em bicos de pés, aproximei-me da janela (fechadinha, que já cá ando há uns anos para saber como é) para ouvir melhor a conversa e tentar perceber o que se passava naquele quintal. Dou um passo atrás (ainda estou dentro de casa e à janela, mas instintos não se contrariam) ao ver ambas as fugitivas trepar parede acima; reparo, então, no bojo de cada uma e apercebo-me de que aquilo não é barriga de mosquitos. E apiedei-me das moças, de esperanças (osgas bebés não deixam de ser bebés), a arrastarem os ventres pelo musgo das paredes, encharcadas e assustadas.

- Clotilde! Conceição! Voltem que ela já se foi embora - pedia a Aurora.
- É impressionante, palavra d'honra - indignou-se a Violeta, que chegava com as malas às costas. Raça das catraias, que lá tirando os livros não sabem fazer mais nada. Mando-vos eu as minhas primas da terra para abrigarem durante uns dias e nem isso conseguem. E agora, como é que é? Hein? Não dizem nada? Estão as três a tremer de medo cada uma para seu lado. Vim eu a correr da outra ponta da rua, até mandei o Idalécio Pombo avisar que não demorava, para aguentarem um bocadinho, e depois chego e é isto?
- Oh Dona Violeta, a culpa não foi nossa. A eurídice não vinha cá fora há tanto tempo, não imaginávamos que hoje lhe desse para isso. E o Artaxerxes também tinha dito que a distraía e nada. Foi só chegar o afinador do Teodoro e esqueceu-se logo de tudo - argumentou a Aurora, com os ramos baixos.
- Bem, agora temos de ver como é que vamos resolver isto. Vou buscar as primas lá acima e já conversamos.

Abri a janela (uma nesga, só) e perguntei à oliveira:

- De onde saíram aquelas duas criaturas, oliveira? Por que não me disseste nada?
-Já sabia que não ias gostar, por isso não valia a pena contar-te. Ias dizer que não, que isto não é a Santa Casa e que só há espaço para uma osga neste quintal. E elas tinham de ficar na rua ou clandestinas noutro quintal qualquer. Não me pareceu correcto e decidimos não te dizer nada.
- De onde é que elas vêm?
- De longe. Olha, são conterrâneas do senhor dos Bichos. Parece que andavam as duas enamoradas do mesmo sardão, vê lá tu. E não sabiam uma da outra! Quando descobriram, já era tarde e ele deu à sola com a viola às costas. Os pais correram com elas de casa e então vieram para aqui, onde sabiam que estava a prima Violeta. Não te zangues com elas. Zanga-te comigo, mas deixa-as ficar, que não têm para onde ir. Além disso, já viste o estado em que estão. É crime pô-las na rua.

Não é que não me tenha ocorrido tal pensamento, e outros piores, por entre arrepios contínuos, mas não podia ser eu a agravar a desgraça destas criaturas. Chegou a Violeta com as duas primas seguindo atrás dela e parou atrás da Aurora, a olhar para mim. Da janela e ainda muito desconfortável com toda a situação, disse:

- Clotilde Conceição, prazer em conhecê-las. Perdoem-me a reacção de há pouco, apanharam-me de surpresa e não consegui evitar. Eu sou a Eurídice e este é o meu quintal. Sejam bem-vindas. Esta é a Aurora e esta a minha oliveira, que já conhecem. Podem ficar onde vos aprouver, desde que não entrem para dentro de casa. Há água e mosquitos com fartura, às vezes aparecem aí besouros. Disponham. Não aceito convites para amadrinhar os pequenotes, mas ensino-os a ler quando chegar a altura. Se precisarem de alguma coisa, falem com a Violeta, que já cá está há muitos anos e sabe as regras da casa.

- A gente não quer dar trabalho, menina - interrompeu a Clotilde.
- Não dão trabalho nenhum. Ficamos assim entendidas e estou certa de que nos daremos todas bem. E agora, se me dão licença, vou lá dentro vasculhar os cantos todos à casa e arredar os móveis todos, não vá eu dar com mais primas desterradas pelos quartos - respondi.

Pardais, caracóis, caraoletas, bichos da seda. De entre toda a bicharada que um quintal pode ter, calha-me uma família de osgas excomungadas e prenhes.

Vou ser tia.
IMIGRAÇÃO

- Xiu, ela vem aí!

Hesitei antes de entrar no quintal. Sei que andam de segredos e a congeminar uma rebelião porque não só não as tenho regado todos os dias como há semanas que não há bolachas maria torradas. O Artaxerexes anda insatisfeito e a Violeta inquieta. A Dona Paciência não tem colaborado com as árvores na sua função de fornecedora de Camus e Sartres, por medo que elas os estraguem ("São edições muito caras, menina eurídice, elas não têm noção!") e a morte das duas baratas anciãs no espaço de uma semana às mãos de um misterioso assassino - estavam moribundas, caramba! No meu chão da cozinha... - exaltou ainda mais os ânimos.

Para rematar este quadro de desconfiança e mau-estar geral, o Manjerico Segundo morreu, enfim, após longa e heróica luta contra pratos de água inadequadamente fundos, assimétricos e sem água.

Entrei no quintal a rogar perdão enquanto pegava no regador e o enchia de água. Estranhei o silêncio generalizado mas continuei a desenrolar justificações e a afastar a horda de mosquitos que invadiu repentinamente o quintal.

- Tantos mosquitos! A Dona Violeta não tem estado cá?
- Tirou férias esta semana. Foi até ao 54 ver a prima, mas deve voltar hoje à noite - respondeu a Aurora.

E é então que vejo algo cair redondo no chão, de um vaso, e começar a subir a parede. Recuo, em pânico, perante uma das maiores osgas que vi em dias da minha vida.

- Desculpa, Clotilde! - gritou a Aurora
Olho para a Aurora, petrificada. A traição! E cai outra osga do vaso da minha oliveira.

- Corre, Conceição! - gritava a oliveira. Larguei o regador, que tombou sobre a nespereira-há-de-ser-se-deus-quiser-não-lhe-vou-dar-nome-enquanto-não-tiver-pelo-menos-dois-palmos-de-existência e corri para fora do quintal.

Oh ignomínia! Traída pela minha prole.

- Não sabias segurar a Conceição um bocadinho melhor?
- A Clotilde caiu primeiro e a Conceição assustou-se. Que querias que fizesse? Elas estão nervosas, é natural. Espero que ainda haja tempo - sussurou a oliveira.

Fiquei a vê-las tremer da janela da sala.