oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Tuesday, November 30, 2010

PORQUE ÀS VEZES É PRECISO SAIR DA FENOMENOLOGIA 



porque os quatro quadradinhos 
de metafísica que como 
por dia nem sempre me são suficientes


porque também não sou nada, 
quando até queria ser alguma coisa

e porque é a única coisa que faz
minha oliveira sorrir quando 
está a chover e o frio lhe 
queima as folhas.





"Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.


(...)"

Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos 



Wednesday, November 03, 2010

INÊS PEREIRA


A Inês falou, há dias, pela primeira vez.
Disse
- Não!

Para grande mágoa minha, não presenciei o acontecimento. Foi por alturas da penúltima grande chuvada de Domingo à noite. Esticou o tronco pequenino, encarou os céus (ou a varanda da vizinha de cima, dependendo da perspectiva) e gritou a plenos pulmões
- Não!


Estarrecidas, a Aurora e a oliveira (contou-me a Violeta, que viu tudo de debaixo do toldo) desenrolaram os ramos que as protegiam do dilúvio e exclamaram
- A Inês falou!
- Não lhe chames Inês, que a rapariga ainda não foi baptizada. Não vês que é aziago?
- Não sejas tonta, Aurora. Se falou, vai viver, isso é certo! Que emoção, a nossa Inês Pereira a falar para se ouvir.
- Faz como entenderes. Eu não lhe chamo nada até a eurídice chegar e baptizar a criatura. Para mim, continua a ser a nespereira, tout court.
- Inês Pereira, a nespereira! Será que já sabe ler? As nespereiras têm fama de ser muito espertas...
- A Criação do Mundo, parece-te bem? - sugeriu a Aurora. - Vou pedir ao Artaxerxes que o traga quando parar de chover.
- Perfeito. Mas por que será que disse "não"? Estará zangada?
- Se calhar não gosta de chuva.
- Eu também não gosto muito, mas agora não há grande coisa a fazer. Estamos no Outono, ainda há-de chover muito - observou, muito bem observado, a oliveira.

- Não! - gritou, de novo, a nespereira Inês Pereira.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nenhuma palavra para além do convicto advérbio de negação e decidiram que a nova árvore, que tão heroicamente aguentou enxurrada após enxurrada (provenientes quer do regador quer do céu), é do contra. Certo é que hoje, com a janela aberta e a televisão ligada nas notícias sobre o orçamento, voltei a ouvir "não" vindo do quintal, mais tímido e em tom de queixume.

São tempos difíceis para uma nespereira, uma Inês Pereira, vir ao mundo. Se é do contra, não sei (se for, terá a quem sair); mas que é bonita e forte a minha árvore, isso é.