oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Wednesday, November 03, 2010

INÊS PEREIRA


A Inês falou, há dias, pela primeira vez.
Disse
- Não!

Para grande mágoa minha, não presenciei o acontecimento. Foi por alturas da penúltima grande chuvada de Domingo à noite. Esticou o tronco pequenino, encarou os céus (ou a varanda da vizinha de cima, dependendo da perspectiva) e gritou a plenos pulmões
- Não!


Estarrecidas, a Aurora e a oliveira (contou-me a Violeta, que viu tudo de debaixo do toldo) desenrolaram os ramos que as protegiam do dilúvio e exclamaram
- A Inês falou!
- Não lhe chames Inês, que a rapariga ainda não foi baptizada. Não vês que é aziago?
- Não sejas tonta, Aurora. Se falou, vai viver, isso é certo! Que emoção, a nossa Inês Pereira a falar para se ouvir.
- Faz como entenderes. Eu não lhe chamo nada até a eurídice chegar e baptizar a criatura. Para mim, continua a ser a nespereira, tout court.
- Inês Pereira, a nespereira! Será que já sabe ler? As nespereiras têm fama de ser muito espertas...
- A Criação do Mundo, parece-te bem? - sugeriu a Aurora. - Vou pedir ao Artaxerxes que o traga quando parar de chover.
- Perfeito. Mas por que será que disse "não"? Estará zangada?
- Se calhar não gosta de chuva.
- Eu também não gosto muito, mas agora não há grande coisa a fazer. Estamos no Outono, ainda há-de chover muito - observou, muito bem observado, a oliveira.

- Não! - gritou, de novo, a nespereira Inês Pereira.

Não conseguiram arrancar-lhe mais nenhuma palavra para além do convicto advérbio de negação e decidiram que a nova árvore, que tão heroicamente aguentou enxurrada após enxurrada (provenientes quer do regador quer do céu), é do contra. Certo é que hoje, com a janela aberta e a televisão ligada nas notícias sobre o orçamento, voltei a ouvir "não" vindo do quintal, mais tímido e em tom de queixume.

São tempos difíceis para uma nespereira, uma Inês Pereira, vir ao mundo. Se é do contra, não sei (se for, terá a quem sair); mas que é bonita e forte a minha árvore, isso é.

3 comments:

APS said...

Que cresça irreverente e que dê frutos!, são os meus votos.
Mas, há que dizê-lo,é uma má altura para nascer e crescer, com tanta nuvem, em cima, e tanto abutre à volta...

Anonymous said...

Julgo que esse NÃO pode ter uma outra explicação, eventualmente, mais delicada. Sendo uma Inês Pereira , portanto bela e posta em sossego, poder-se-á tratar de uma reencarnação (neste caso seria antes uma revegetarização) da referida personagem quando a D. Constança acusava a sua aia de andar “embrulhada” com o marido e ela tentava negar o caso.

olobobom

oliveira da eurídice said...

lobobom: não fosse o horror que temos aqui nesta casa a essa víbora peçonhenta, espalha-brasas e ladra de maridos da "Dona" Inês, e a teoria da revegetarização até podia fazer sentido. Mas no meu quintal não há disso. É tudo gente e flora de bem que não faz mal a uma mosca (tirando a Dona Violeta, que tem necessariamente de comer moscas para sobreviver).