oliveira da eurídice

oliveira da eurídice

Saturday, February 16, 2013

Os (...) da vida


(...)
- Se estás a procrastinar desta maneira é porque tens alguma coisa importante para fazer.
- Queres ouvir a história ou não?
- Querer, quero, mas já sei que se estás aqui fora a uma hora destas, não deve ser fácil nem rápido o que tens para fazer.
(...)

Do caderno Há gente que sabe coisas de que o mundo não desconfia, volume IV


- Achas que há pessoas que sabem mais do que aquilo que estão a dizer?
- Acho que sim. 


Foto: Sofia Loren em Portugal 
Agnés Varda, Póvoa do Varzim
1956

Na parede


Há dias em que andamos tão assustados que não podemos deixar de nos perguntar o que têm os outros de tão assustador para estarmos assim. E quando olhamos para trás, sobre o ombro, de esguelha e a medo, em vez de encontrarmos os outros, sentimos uma sombra. Parece ser nossa, mas não tínhamos dado por ela ontem. E quando nos dizemos que os contornos que vemos não lembram os nossos - não deve ser a nossa, decerto - somos confrontados com um problema de memória.

A oliveira às vezes assusta-se com a sombra dos próprios ramos. Ela conhece-os bem, mas à noite não os reconhece. A sombra não tem ramos castanhos e folhas verdes. A sombra é negra e não distingue nela princípio e fim, sonho e pesadelo. As fronteiras de si extinguem-se e tudo o que é ela se confunde numa estranheza que é outra, embora seja ela. Reconhece os contornos, se se concentrar, mas o que encerram?
E ela convence-se de que não é ela. Diz-me que é outra oliveira que ali está, que só aparece à noite. Outra oliveira a quem só aconteceram coisas más, cuja tristeza a contagia. Uma outra oliveira que lhe tira até a sede.

Contei-lhe então das noites que trazem consigo não o mal do mundo, mas o mal da gente. Ela interrompe-me e diz nunca ter feito mal. Tirando aquela vez em que gozou com a Inês Pereira por ela nunca mais crescer e ficar toda encolhida mal caíam umas pinguinhas de chuva. E aquela outra vez em que assustou a Violeta gritando «Ela vem lá!» e a desgraçada caiu do muro para dentro do prato da água da Aurora e quase morreu afogada. E ainda aquela vez, quando gritou dia e noite durante mês e meio por não querer mudar a terra do vaso, alegando ir perder todos os amigos que tinha, embora estivesse a definhar por já não ter vitaminas nenhumas... E depois há as vezes em que eu - eurídice dona da oliveira - não lhe falei durante 2 meses sem ela saber porquê, a outra vez em que a Aurora lhe gozou com os ramos do meio, por serem «raquíticos», da vez em que teve sede e achou que ia morrer, da vez em que me viu de tesoura de podar em punho e se mandou para o chão, espalhando terra pelo quintal inteiro.

«Esse mal todo», respondi, então. «Esse mal todo é a tua sombra de noite. A tua sombra és tu.»
- Não percebo... Como me livro de mim?
- Lamento, mas isso não existe. Não te livras de ti. Vives contigo.
- De dia e de noite?
- De dia e de noite.
- Também é assim contigo?
- Não, eu sou especial.
- A sério?
- Não.
- Oh.
- Pois.

- Olha, é quase de manhã.
- Tens razão. É melhor ires-te embora que a Violeta vem cá hoje ver aquele prato de água que vagou o Verão passado. É para a irmã que enviuvou há dois anos. Muda-se daqui a um mês.
- Fui.